Lei n.º
83/95
de 31 de Agosto
Direito de participação procedimental e de acção popular
A Assembleia da República decreta, nos termos dos artigos 52.º, n.º 3, 164.º, alínea d), e 169.º, n.º 3, da Constituição, o seguinte:
CAPÍTULO
I
Disposições gerais
Artigo 1.º
Âmbito da presente lei
1 - A presente
lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos
o direito de participação popular em procedimentos administrativos
e o direito de acção popular para a prevenção, a
cessação ou a perseguição judicial das infracções
previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição.
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente
interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente,
a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços,
o património cultural e o domínio público.
Artigo 2.º
Titularidade dos direitos de participação procedimental e do direito
de acção popular
1 - São
titulares do direito procedimental de participação popular e do
direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos
seus direitos civis e políticos e as associações e fundações
defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de
terem ou não interesse directo na demanda.
2 - São igualmente titulares dos direitos referidos no número
anterior as autarquias locais em relação aos interesses de que
sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição.
Artigo 3.º
Legitimidade activa das associações e fundações
Constituem requisitos da legitimidade activa das associações e fundações:
a) A personalidade jurídica;
b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate;
c) Não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.
CAPÍTULO
II
Direito de participação popular
Artigo 4.º
Dever de prévia audiência na preparação de planos
ou na localização e realização de obras e investimentos
públicos
1
- A adopção de planos de desenvolvimento das actividades da Administração
Pública, de planos de urbanismo, de planos directores e de ordenamento
do território e a decisão sobre a localização e
a realização de obras públicas ou de outros investimentos
públicos com impacte relevante no ambiente ou nas condições
económicas e sociais e da vida em geral das populações
ou agregados populacionais de certa área do território nacional
devem ser precedidos, na fase de instrução dos respectivos procedimentos,
da audição dos cidadãos interessados e das entidades defensoras
dos interesses que possam vir a ser afectados por aqueles planos ou decisões.
2 - Para efeitos desta lei, considera-se equivalente aos planos a preparação
de actividades coordenadas da Administração a desenvolver com
vista à obtenção de resultados com impacte relevante.
3 - São consideradas como obras públicas ou investimentos públicos
com impacte relevante para efeitos deste artigo os que se traduzam em custos
superiores a um milhão de contos ou que, sendo de valor inferior, influenciem
significativamente as condições de vida das populações
de determinada área, quer sejam executados directamente por pessoas colectivas
públicas quer por concessionários.
Artigo 5.º
Anúncio público do início do procedimento para elaboração
dos planos ou decisões de realizar as obras ou investimentos
1 - Para a
realização da audição dos interessados serão
afixados editais nos lugares de estilo, quando os houver, e publicados anúncios
em dois jornais diários de grande circulação, bem como
num jornal regional, quando existir.
2 - Os editais e anúncios identificarão as principais características
do plano, obra ou investimento e seus prováveis efeitos e indicarão
a data a partir da qual será realizada a audição dos interessados.
3 - Entre a data do anúncio e a realização da audição
deverão mediar, pelo menos, 20 dias, salvo casos de urgência devidamente
justificados.
Artigo 6.º
Consulta dos documentos e demais actos do procedimento
1 - Durante
o período referido no n.º 3 do artigo anterior, os estudos e outros
elementos preparatórios dos projectos dos planos ou das obras deverão
ser facultados à consulta dos interessados.
2 - Dos elementos preparatórios referidos no número anterior constarão
obrigatoriamente indicações sobre eventuais consequências
que a adopção dos planos ou decisões possa ter sobre os
bens, ambiente e condições de vida das pessoas abrangidas.
3 - Poderão também durante o período de consulta ser pedidos,
oralmente ou por escrito, esclarecimentos sobre os elementos facultados.
Artigo 7.º
Pedido de audiência ou de apresentação de observações
escritas
1 - No prazo
de cinco dias a contar do termo do período da consulta, os interessados
deverão comunicar à autoridade instrutora a sua pretensão
de serem ouvidos oralmente ou de apresentarem observações escritas.
2 - No caso de pretenderem ser ouvidos, os interessados devem indicar os assuntos
sobre que pretendem intervir e qual o sentido geral da sua intervenção.
Artigo 8.º
Audição dos interessados
1 - Os interessados
serão ouvidos em audiência pública.
2 - A autoridade encarregada da instrução prestará os esclarecimentos
que entender úteis durante a audiência, sem prejuízo do
disposto nos artigos seguintes.
3 - Das audiências serão lavradas actas assinadas pela autoridade
encarregada da instrução.
Artigo 9.º
Dever de ponderação e de resposta
1 - A autoridade
instrutora ou, por seu intermédio, a autoridade promotora do projecto,
quando aquela não for competente para a decisão, responderá
às observações formuladas e justificará as opções
tomadas.
2 - A resposta será comunicada por escrito aos interessados, sem prejuízo
do disposto no artigo seguinte.
Artigo 10.º
Procedimento colectivo
1 - Sempre
que a autoridade instrutora deva proceder a mais de 20 audições,
poderá determinar que os interessados se organizem de modo a escolherem
representantes nas audiências a efectuar, os quais serão indicados
no prazo de cinco dias a contar do fim do período referido no n.º
1 do artigo 7.º
2 - No caso de os interessados não se fazerem
representar, poderá a entidade instrutora escolher, de entre os interessados,
representantes de posições afins, de modo a não exceder
o número de 20 audições.
3 - As observações escritas ou os pedidos de intervenção
idênticos serão agrupados a fim de que a audição
se restrinja apenas ao primeiro interessado que solicitou a audiência
ou ao primeiro subscritor das observações feitas.
4 - No caso de se adoptar a forma de audição
através de representantes, ou no caso de a apresentação
de observações escritas ser em número superior a 20, poderá
a autoridade instrutora optar pela publicação das respostas aos
interessados em dois jornais diários e num jornal regional, quando exista.
Artigo 11.º
Aplicação do Código do Procedimento Administrativo
São aplicáveis aos procedimentos e actos previstos no artigo anterior as pertinentes disposições do Código do Procedimento Administrativo.
CAPÍTULO
III
Do exercício
da acção popular
Artigo 12.º
Acção procedimental administrativa e acção popular
civil
1 - A acção
procedimental administrativa compreende a acção para defesa dos
interesses referidos no artigo 1.º e o recurso contencioso com fundamento
em ilegalidade contra quaisquer actos administrativos lesivos dos mesmos interesses.
2 - A acção popular civil pode revestir
qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil.
Artigo 13.º
Regime especial de indeferimento da petição inicial
A petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram.
Artigo 14.º
Regime especial de representação processual
Nos processos de acção popular, o autor representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão previsto no artigo seguinte, com as consequências constantes da presente lei.
Artigo 15.º
Direito de exclusão por parte de titulares dos interesses em causa
1 - Recebida
petição de acção popular, serão citados os
titulares dos interesses em causa na acção de que se trate, e
não intervenientes nela, para o efeito de, no prazo fixado pelo juiz,
passarem a intervir no processo a título principal, querendo, aceitando-o
na fase em que se encontrar, e para declararem nos autos se aceitam ou não
ser representados pelo autor ou se, pelo contrário, se excluem dessa
representação, nomeadamente para o efeito de lhes não serem
aplicáveis as decisões proferidas, sob pena de a sua passividade
valer como aceitação, sem prejuízo do disposto no n.º
4.
2 - A citação será feita por anúncio ou anúncios
tornados públicos através de qualquer meio de comunicação
social ou editalmente, consoante estejam em causa interesses gerais ou geograficamente
localizados, sem obrigatoriedade de identificação pessoal dos
destinatários, que poderão ser referenciados enquanto titulares
dos mencionados interesses, e por referência à acção
de que se trate, à identificação de pelo menos o primeiro
autor, quando seja um entre vários, do réu ou réus e por
menção bastante do pedido e da causa de pedir.
3 - Quando não for possível individualizar os respectivos titulares,
a citação prevista no número anterior far-se-á por
referência ao respectivo universo, determinado a partir de circunstância
ou qualidade que lhes seja comum, da área geográfica em que residam
ou do grupo ou comunidade que constituam, em qualquer caso sem vinculação
à identificação constante da petição inicial,
seguindo-se no mais o disposto no número anterior.
4 - A representação referida no n.º 1 é ainda susceptível
de recusa pelo representado até ao termo da produção de
prova ou fase equivalente, por declaração expressa nos autos.
Artigo 16.º
Ministério Público
1 - O Ministério
Público fiscaliza a legalidade e representa o Estado quando este for
parte na causa, os ausentes, os menores e demais incapazes, neste último
caso quer sejam autores ou réus.
2 - O Ministério Público poderá ainda representar outras
pessoas colectivas públicas quando tal for autorizado por lei.
3 - No âmbito da fiscalização da legalidade, o Ministério
Público poderá, querendo, substituir-se ao autor em caso de desistência
da lide, bem como de transacção ou de comportamentos lesivos dos
interesses em causa.
Artigo 17.º
Recolha de provas pelo julgador
Na acção popular e no âmbito das questões fundamentais definidas pelas partes, cabe ao juiz iniciativa própria em matéria de recolha de provas, sem vinculação à iniciativa das partes.
Artigo 18.º
Regime especial de eficácia dos recursos
Mesmo que determinado recurso não tenha efeito suspensivo, nos termos gerais, pode o julgador, em acção popular, conferir-lhe esse efeito, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação.
Artigo 19.º
Efeitos do caso julgado
1 - As sentenças
transitadas em julgado proferidas em acções ou recursos administrativos
ou em acções cíveis, salvo quando julgadas improcedentes
por insuficiência de provas, ou quando o julgador deva decidir por forma
diversa fundado em motivações próprias do caso concreto,
têm eficácia geral, não abrangendo, contudo, os titulares
dos direitos ou interesses que tiverem exercido o direito de se auto-excluírem
da representação.
2 - As decisões transitadas em julgado são publicadas a expensas
da parte vencida e sob pena de desobediência, com menção
do trânsito em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo
universo dos interessados no seu conhecimento, à escolha do juiz da causa,
que poderá determinar que a publicação se faça por
extracto dos seus aspectos essenciais, quando a sua extensão desaconselhar
a publicação por inteiro.
Artigo 20.º
Regime especial de preparos e custas
1 - Pelo exercício
do direito de acção popular não são exigíveis
preparos.
2 - O autor fica isento do pagamento de custas em caso de procedência
parcial do pedido.
3 - Em caso de decaimento total, o autor interveniente será condenado
em montante a fixar pelo julgador entre um décimo e metade das custas
que normalmente seriam devidas, tendo em conta a sua situação
económica e a razão formal ou substantiva da improcedência.
4 - A litigância de má-fé rege-se pela lei geral.
5 - A responsabilidade por custas dos autores intervenientes é solidária,
nos termos gerais.
Artigo 21.º
Procuradoria
O juiz da causa arbitrará o montante da procuradoria, de acordo com a complexidade e o valor da causa.
CAPÍTULO
IV
Responsabilidade civil e penal
Artigo 22.º
Responsabilidade civil subjectiva
1 - A responsabilidade
por violação dolosa ou culposa dos interesses previstos no artigo
1.º constitui o agente causador no dever de indemnizar o lesado ou lesados
pelos danos causados.
2 - A indemnização pela violação de interesses de
titulares não individualmente identificados é fixada globalmente.
3 - Os titulares de interesses identificados têm direito à correspondente
indemnização nos termos gerais da responsabilidade civil.
4 - O direito à indemnização prescreve no prazo de três
anos a contar do trânsito em julgado da sentença que o tiver reconhecido.
5 - Os montantes correspondentes a direitos prescritos serão entregues
ao Ministério da Justiça, que os escriturará em conta especial
e os afectará ao pagamento da procuradoria, nos termos do artigo 21.º,
e ao apoio no acesso ao direito e aos tribunais de titulares de direito de acção
popular que justificadamente o requeiram.
Artigo 23.º
Responsabilidade civil objectiva
Existe ainda a obrigação de indemnização por danos independentemente de culpa sempre que de acções ou omissões do agente tenha resultado ofensa de direitos ou interesses protegidos nos termos da presente lei e no âmbito ou na sequência de actividade objectivamente perigosa.
Artigo 24.º
Seguro de responsabilidade civil
Sempre que o exercício de uma actividade envolva risco anormal para os interesses protegidos pela presente lei, deverá ser exigido ao respectivo agente seguro da correspondente responsabilidade civil como condição do início ou da continuação daquele exercício, em termos a regulamentar.
Artigo 25.º
Regime especial de intervenção no exercício da acção
penal dos cidadãos e associações
Aos titulares do direito de acção popular é reconhecido o direito de denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público por violação dos interesses previstos no artigo 1.º que revistam natureza penal, bem como o de se constituírem assistentes no respectivo processo, nos termos previstos nos artigos 68.º, 69.º e 70.º do Código de Processo Penal.
CAPÍTULO
V
Disposições finais e transitórias
Artigo 26.º
Dever de cooperação das entidades públicas
1 - É
dever dos agentes da administração central, regional e local,
bem como dos institutos, empresas e demais entidades públicas, cooperar
com o tribunal e as partes intervenientes em processo de acção
popular.
2 - As partes intervenientes em processo de acção popular poderão,
nomeadamente, requerer às entidades competentes as certidões e
informações que julgarem necessárias ao êxito ou
à improcedência do pedido, a fornecer em tempo útil.
3 - A recusa, o retardamento ou a omissão de dados e informações
indispensáveis, salvo quando justificados por razões de segredo
de Estado ou de justiça, fazem incorrer o agente responsável em
responsabilidade civil e disciplinar.
Artigo 27.º
Ressalva de casos especiais
Os casos de acção popular não abrangidos pelo disposto na presente lei regem-se pelas normas que lhes são aplicáveis.
Artigo 28.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no 60.º dia seguinte ao da sua publicação.
Aprovada em
21 de Junho de 1995.
O Presidente da Assembleia da República, António Moreira Barbosa
de Melo.
Promulgada em 8 de Agosto de 1995.
Publique-se.
O Presidente da República, MÁRIO SOARES.
Referendada em 11 de Agosto de 1995.
Pelo Primeiro-Ministro, Manuel Dias Loureiro, Ministro da Administração
Interna.